Parei de comer carne no primeiro dia de 2011 motivada por
nada. Entrou para a conta dos eventos inexplicáveis. Acordei sem desejo de comer animais e foi este enunciado ético até então silencioso que me levou à decisão.
Já tentei entender. Fuçando fundo nas minhas memórias com comida, descubro: 1) eu era louca por carne; 2) a lembrança de que carne um dia foi bicho sempre foi desagradável.
Eu comia, mas os vestígios precisavam ser eliminados. Galinha com osso, não. Se alguém na mesa começava a chupar o pescocinho do frango na sopa, adeus apetite.
Naquele reveillon de 2010 para 2011 cheio de incompreensíveis disposições cósmicas, o que tinha sido incômodo por três décadas tornou-se incômodo demais. Como é que essas coisas acontecem? O ano virou. Fui almoçar de ressaca com dois amigos no final da Asa Norte (Brasília) e na hora de escolher o prato, observei minha boca perguntando para a garçonete a frase que seria repetida muitas vezes depois:
-Quais as opções vegetarianas?
Isso já tem quatorze anos.
No começo foi difícil para minha família de origem gaúcha, mas no fim das contas meus pais até reduziram a quantidade de carne na dieta deles. Ser vegetariana me transformou para sempre, e este é o momento perfeito para eu te contar que tudo virou luz. Este também é o momento perfeito para eu te revelar que cheguei à minha dieta definitiva e encontrei a plena felicidade alimentar. Tudo
mentira.
Tarde de outono de 2021. Estou fazendo compras e avisto um isopor com duas linguiças. Agarro o isopor com a força da vida e devoro aquelas linguiças com a mão, antes mesmo de chegar ao caixa.
Quem me viu no supermercado Pingo Doce no dia 18 de outubro de 2021 nunca imaginou que a mulher com a boca cheia de gordura tinha passado uma década inteira sem tocar num toucinho de porco.
Por que?
Porque eu tinha um sangramento na época - pode ser. Ou porque (dizem) a densidade do que comemos tem a ver com a densidade das coisas que enfrentamos num dado momento, e eu estava apenas começando uma vida nova. Porque eu sentia muita falta de casa e carne me lembrava minhas origens - pode ser, também.
Depois daquela tarde no supermercado, passei a comer porco, galinha e peixe por três anos. Um belo dia, acabou.
Voltei para a dieta vegetariana outra vez.
Desde que tomei a decisão, em 2011, nunca questionei ser vegetariana. Apesar da minha incapacidade de honrar o compromisso às vezes, o compromisso nunca me surgiu como algo pesado. Nem questionei a escolha.
Sou vegetariana. Pronto, só isso.
Dia desses uma pessoa querida disse que eu tenho um problema: abandono as coisas quando elas ficam de verdade. A afirmação me machucou tremendamente. Certas coisas machucam tanto que deixam uma sensação física de dor no peito.
Pensei na afirmação. Ela pegou numa parte que dói. É provável que a afirmativa tenha sido enunciada para me machucar. Não tenho certeza. De vez em quando machucamos quem amamos mais. Isto é um mistério tão grande quanto voltar a comer carne depois de uma década e logo depois
parar.
De qualquer modo, pensei muito naquilo. Pensei no que abandonei. Nos amigos que romperam comigo e nos amigos com os quais rompi. Pensei nos namoros que nunca duraram muito, nas cidades que deixei para trás. Lembrei do pedido de desligamento do doutorado, depois pensei na carta assinando o pedido de exoneração do serviço público, e disto tudo concluo que a afirmação contém elementos de verdade.
Então dei mais um passo e pensei no que ficou. Depois de ver tanto ir embora, só dava para enxergar Shiva dançando com aquela coreografia de quem destrói o mundo. Sobrou algo?
Pouca coisa, muita coisa. Um montão de amigos que vêm caminhando comigo no meio das tormentas para dar o testemunho de que somos sobreviventes da arca de Noé em meio a este dilúvio mutchocrazy chamado Viver. Lembrei da escrita, para a qual eu volto desde os sete anos de idade. E também das minhas aspirações espirituais.
Tudo isso ficou, mas nada ficou do jeito que eu pensei que ficaria. Do jeito que eu pensei que ficaria, tudo - abolutamente tudo - sumiu. Só a transformação permanece.
Foi aí, então, que lembrei da minha vida vegetariana. Senti ternuna imensa, quis escrever sobre ela. De vez em quando, encontramos na experiência algum evento que é tradução precisa de quem somos. Minha vida vegetariana persiste, apesar dos anos. Tão imperfeita, tão cheia de voltas. Tão certa, afinal. No fim das contas, até isso eu faço mal: abandono tudo, até o vegetarianismo que adoro tanto. Mas sou tão errada que só consigo abandonar pela metade.
Agenda: 20/06 às 19h na Ponta de Lança, em São Paulo
Passagem-relâmpago pelo Brasil! Às 19hs, na Livraria Ponta de Lança, vai rolar o bate-papo Escritoras em conversa. Vou estar por lá conversando com a Ana Rüsche, a Paula Maria e a Lívia Piccolo. Vamos nos encontrar por lá?
Serviço
Escritoras em Conversa - noite de conversas com Ana Rüsche, Surina Mariana, Lívia Piccolo e Paula Maria.
20 de junho (sexta) às 19h na Livraria Ponta de Lança (Rua Aureliano Coutinho, 26 - Vila Buarque)
Temos posters!
- Posters! Estou de passagem pelo Brasil e tenho posters disponíveis para pronta-entrega até o dia 20 de junho. Este tipo de print mais em conta só rola quando estou por aqui. Todas as ilustrações que estão no Sofá da Surina de hoje (e outras!) estão à venda (original e prints). Detalhes por email - surinamariana@gmail.com
-Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Notinhas e recomendações
-Feganismo, a Newsletter que combina vida vegana com feminismo é uma daquelas leituras maravilhosas.
- Aqui algumas edições bem especiais das escritoras que estarão junto comigo na Ponta de Lança no sábado:
Junho no Sofá
Neste mês de junho, as edições do Sofá da Surina vão falar sobre nossa relação com outras espécies. Na primeira edição, o tema foi a amizade entre a minha gata e eu. Nesta, escrevi sobre o meu vegetarianismo imperfeito e por fim, na última edição do mês, o assunto será a Bodhi Tree (que fica em Bodhgaya) e Arunachala (a montanha no sul da Índia que é considerada uma encarnação de Shiva).
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Ah! E que você seja feliz, sempre. Até a próxima,
Surina, fui vegetariana por 6 anos, mas quando engravidei senti uma vontade louca de comer rabada. Eu sempre amei rabo com agrião e angu. Já estava sendo privada de muitas coisas, daí voltei a comer carne. Hoje, com o rim cagado, a nutricionista está reduzindo proteína da minha dieta. Provavelmente terei que ser vegetariana, em breve, mas não por nobres motivos.
As pessoas gostam muito de cobrar a coerência dos outros e esquecem de si próprias.
Há mais ou menos um mês, eu, a vegetariana, comprei uma bandeja de peito de frango. Preparei com carinho… e com estranheza. Fiz na versão que eu mais gostava: estrogonofe!
Comi, estranhei tudo: o gosto, a textura… e essa nova Thay que surgiu. Minha mãe, pouco boba, no dia seguinte apareceu com um sanduíche de frango pra mim. Eu comi! Mas logo declarei: “Mãe, essa minha fase de comer carne durou dois dias… já acabou! Hahaha.”
Enfim, é muito chata essa coisa de se obrigar. Eu amo carne, mas hoje escolho não comer. Só que, juro de pé junto, não sei se isso vai ser assim para todo o sempre. Amém.
Beijo, Marina!